Encontrando-se
o leitor atento ainda sob a viva impressão provocada por Incarnation, une Philosophie de la Chair, livro essencial de Michel
Henry,
aparecem, nos últimos tempos, alguns textos que, num registo mais modesto e,
por vezes, mais académico, retomam o trabalho em torno da fenomenologia da
carne, confirmando, assim, ser esta uma das áreas mais resistentes dos estudos
fenomenologicamente orientados que se produzem nos nossos dias. Todos estes
textos nos parecem tomados pela indecisão entre uma psicologia da percepção e
uma reavaliação da fenomenologia do corpo. Mas eis que, pela pena de Jean-Luc
Marion, nos chega hoje um outro texto da maior importância, de que daremos aqui
apenas algumas impressões iniciais.
Em
Michel Henry, encontrávamos uma obra verdadeiramente original, cuja importância
teórica (disso estamos certos) continuará a crescer nos próximos anos. Nessas
páginas são confrontados, a par e passo, o tema da “encarnação” tal como
esta se manifesta na riquíssima tradição cristã e as tematizações
fenomenológicas da carne, que, de Husserl a Merleau-Ponty, estão longe de
esgotar todas as “propriedades fenomenológicas originais de uma carne viva,
sensível, desejosa e sofredora”.
Dela não nos ocuparemos longamente nesta recensão, já que uma tal obra se
colocou num plano que, de algum modo, podemos dizer inaugural. No que toca ao
pensamento de Michel Henry, será suficiente sublinharmos a sua decidida inscrição
numa tradição metafísica relida à luz da subjectividade. Esta, tomada entre
o absoluto da consciência “auto-afectada”, por um lado, e o absoluto do
Ser, por outro, acaba por emergir numa totalidade “imanente” onde toda a
exterioridade revela a sua fraca capacidade de delinear a dúplice experiência
do aparecimento carnal. “Porque sou, na minha carne, a vida do meu corpo orgânico,
sou também a vida do mundo”. É neste sentido original e radical, que o mundo
é o mundo-da-vida, uma Lebenswelt.
Um
dos aspectos mais perturbadores do texto de Michel Henry reside no modo como
este expõe as fissuras e as insuficiências analíticas que as fenomenologias
do século XX comportam. Abrindo, a partir daí, uma filosofia da carne capaz de
quebrar esse constante desdobramento do olhar e da sua inscrição mundana que a
questão da intencionalidade, quando aplicada a si mesma, necessariamente
comporta, o autor mostra-nos a fenomenologia husserliana como uma aporia
nocturna, já que é a própria visão que mergulha na sua noite quando do mundo
espera receber toda a luz. Uma “fenomenologia radical da vida”, como propõe
Michel Henry, pelo contrário, abre a inteligibilidade dos entes vivos a partir
do invisível, que não é aqui traço do mundo, mas antes “auto-revelação
originária do vivo”.
Um corpo humano será sempre opaco na sua simples factualidade, na ilusão de
que um corpo possa simplesmente “estar” aí. Um corpo interpela-nos tanto
mais quanto a sua emergência se faça presença no cansaço que a sua
representação motiva. Como pergunta Henry, “Onde é a carne apenas uma aparência?
No mundo. É o aparecer do mundo que despoja a carne de toda a realidade”.
Entre
M. Henry e J.-L. Marion, são quatro os livros que podemos aqui sumariamente
referir e que, não sendo todos filiáveis no trabalho de Michel Henry, com ele
devem inevitavelmente ser confrontados. Em primeiro lugar, o livro de Chantal
Jaquet intitulado Le Corps.
Seguidamente, a reedição revista de uma pequena obra homónima dessa e
assinada por Michel Bernard. Finalmente, uma outra reedição : a Anthropologie
du corps et modernité, assinada por David Le Breton. Todos eles nos
interessam, essencialmente, na medida em que nos podem ajudar a contextualizar
uma perspectivação timidamente fenomenológica do corpo e da carne que
persiste na cena intelectual francesa. O quarto, Corps
et Langage, de Dastur, é talvez o mais significativo de todos porque
avalia, pela primeira vez de um modo sistemático, a transição (interrompida
pela morte) entre uma filosofia do corpóreo que todos conhecemos bem em
Merleau-Ponty, e o crescente interesse deste por uma perspectivação ontológica
da problemática da carne que se manifesta nos últimos textos.
Esta
distinção – corpo e carne
– necessita de ser sublinhada: embora magníficas, as investigações
realizadas nos anos 40 do século passado por Merleau-Ponty, como no caso de Phénoménologie
de la Perception, centraram-se no corpo
e preservaram, no essencial, a integridade deste como ser-no-mundo. A tematização
da postura é, a este título exemplar: o corpo não se situaria perante um espaço
objectivo, mas estaria antes “ancorado” a uma certa situação onde tarefas
actuais ou possíveis são abrangidas pela constituição da postura. Afirmava
Merleau-Ponty que «o corpo é eminentemente um espaço expressivo». Ele será,
aliás, fonte de toda a expressão. Esta abordagem enraíza-se numa definição
intencional da experiência tal como Husserl a formulou no quadro de uma analítica
transcendental (em sentido fenomenológico) onde o plano da consciência e o das
coisas a ela exteriores se encontram irremediavelmente separados.
Ora,
a carne, e esse é já um tema tão
claro no póstumo Le Visible et
l’Invisible, pode ser entendida como o ser
que contém em si a sua negação, cortando-se aqui toda a concepção sartriana
da negatividade exterior ao próprio ser. Torna-se, assim, indispensável
distinguir as problemáticas do “corpo próprio”, presentes nas primeiras
obras de Merleau-Ponty, com aquilo que, nos últimos anos, passará a ser por
ele designado como “carne”. Na carne,
o sujeito pode aceder à experiência fundamental da reversibilidade entre
aquilo que é sentido e aquele que sente. Merleau-Ponty dá-lhe um nome
proveniente da poética (e da erótica): o “quiasma”.
Se
mundo e carne são definidos, até aqui, como entrelaçados ou separados, a
qualquer um deles é retirado um estatuto predominante na obra que constitui o
ponto de chegada desta breve resenha: Le
Phénomène Érotique. É ao amor,
mas ao amor que recusa estirar-se entre eros
e agapé, que aqui é atribuído o
lugar axial. Porque “um conceito de amor deve poder devolver uma racionalidade
a tudo aquilo que o pensamento não erótico desqualifica como irracional”.
Em Marion, esta acepção do amor é, numa tradução voluntariamente “bárbara”,
uma “tomada de carne” (une prise de
chair) que funciona como uma tomada de consciência. O seu aqui é, desde
logo, um lá que reafirma a contradição do amor: a sua sempre excessiva inscrição
no mundo; a sua sempre insuficiente marca carnal. Mas para o amante (e este é
um livro de fenomenologia habitado por figuras) esse excesso inquieta, porque a
inscrição nunca se faz horizonte. E essa insuficiência da carne desespera,
porque a carne move-se na temporalidade do que, estando vivo, esbate, esconde ou
afasta a marca do amor. Só há amplexo amoroso na medida em que este estreite,
na diferença, carne e corpo.
O
que há de mais admirável neste texto é a descrição de como o amor comporta
a destruição de um cálculo, do cálculo irrisório do ego que avança armado
de uma razão para amar. O amante traz a diferença à troca amorosa, assim a
desqualificando enquanto troca que não seja a troca incalculável da carne.
Porque, ao contrário do corpo, a carne é privação na dor e doação no
prazer. A posse da carne de um outro, não é equivalente à posse do seu corpo.
Entrar na sua carne faz com que o amante abandone o mundo. Daí que Marion possa
escrever: “Não basta limitar a um contacto, por mais ténue que seja, a
contiguidade de dois corpos físicos para aí fazer aparecer duas carnes;
permanecer-se-ia ainda no mundo, como se se estivesse numa improvável zona
fronteiriça entre aquilo que lhe pertence e aquilo que já não lhe pertence.
Mesmo se só uma carne toca um corpo (enquanto que corpo algum vez alguma tocou
outro corpo), por essa razão nem mesmo uma carne toca uma carne, na medida em
que a primeira imediatamente se apaga e se dissipa diante desta”.
Duplo
percurso fascinante este: radical redução erótica que se distancia
infinitamente das reduções ao erótico que marcam o tempo das imagens; radical
desmontagem de uma fenomenologia que só admitia figuras suspensas no phainomenon seco e vazio de onde estava arredada toda a impressão,
toda a hylé, aberta pela estranheza
carnal.
Traduza-se
urgentemente.
Referências
Bibliográficas
Jean-Luc
MARION, Le Phénomène érotique,
Paris, Grasset, 2003.
Michel
HENRY, Incarnation, Une Philosophie de la
Chair, Paris, Seuil, 2000.
Michel
BERNARD, Le Corps, Paris, Seuil, 2002
David
LE BRETON, Anthropologie du Corps et
Modernité, Paris, PUF, 2001
Françoise
DASTUR, Corps et Langage, essais sur
Merleau-Ponty, Encre Marine, 2002
Chantal
JAQUET, Le
Corps, Paris, PUF, 2001