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  DA CARNE À TROCA CARNAL: OS PERCURSOS DE UMA FENOMENOLOGIA  RENOVADA

  [ Jorge Leandro Rosa ]

          
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Encontrando-se o leitor atento ainda sob a viva impressão provocada por Incarnation, une Philosophie de la Chair, livro essencial de Michel Henry[1], aparecem, nos últimos tempos, alguns textos que, num registo mais modesto e, por vezes, mais académico, retomam o trabalho em torno da fenomenologia da carne, confirmando, assim, ser esta uma das áreas mais resistentes dos estudos fenomenologicamente orientados que se produzem nos nossos dias. Todos estes textos nos parecem tomados pela indecisão entre uma psicologia da percepção e uma reavaliação da fenomenologia do corpo. Mas eis que, pela pena de Jean-Luc Marion, nos chega hoje um outro texto da maior importância, de que daremos aqui apenas algumas impressões iniciais.

Em Michel Henry, encontrávamos uma obra verdadeiramente original, cuja importância teórica (disso estamos certos) continuará a crescer nos próximos anos. Nessas páginas são confrontados, a par e passo, o tema da “encarnação” tal como esta se manifesta na riquíssima tradição cristã e as tematizações fenomenológicas da carne, que, de Husserl a Merleau-Ponty, estão longe de esgotar todas as “propriedades fenomenológicas originais de uma carne viva, sensível, desejosa e sofredora”[2]. Dela não nos ocuparemos longamente nesta recensão, já que uma tal obra se colocou num plano que, de algum modo, podemos dizer inaugural. No que toca ao pensamento de Michel Henry, será suficiente sublinharmos a sua decidida inscrição numa tradição metafísica relida à luz da subjectividade. Esta, tomada entre o absoluto da consciência “auto-afectada”, por um lado, e o absoluto do Ser, por outro, acaba por emergir numa totalidade “imanente” onde toda a exterioridade revela a sua fraca capacidade de delinear a dúplice experiência do aparecimento carnal. “Porque sou, na minha carne, a vida do meu corpo orgânico, sou também a vida do mundo”. É neste sentido original e radical, que o mundo é o mundo-da-vida, uma Lebenswelt.

Um dos aspectos mais perturbadores do texto de Michel Henry reside no modo como este expõe as fissuras e as insuficiências analíticas que as fenomenologias do século XX comportam. Abrindo, a partir daí, uma filosofia da carne capaz de quebrar esse constante desdobramento do olhar e da sua inscrição mundana que a questão da intencionalidade, quando aplicada a si mesma, necessariamente comporta, o autor mostra-nos a fenomenologia husserliana como uma aporia nocturna, já que é a própria visão que mergulha na sua noite quando do mundo espera receber toda a luz. Uma “fenomenologia radical da vida”, como propõe Michel Henry, pelo contrário, abre a inteligibilidade dos entes vivos a partir do invisível, que não é aqui traço do mundo, mas antes “auto-revelação originária do vivo”[3]. Um corpo humano será sempre opaco na sua simples factualidade, na ilusão de que um corpo possa simplesmente “estar” aí. Um corpo interpela-nos tanto mais quanto a sua emergência se faça presença no cansaço que a sua representação motiva. Como pergunta Henry, “Onde é a carne apenas uma aparência? No mundo. É o aparecer do mundo que despoja a carne de toda a realidade”[4].

 

Entre M. Henry e J.-L. Marion, são quatro os livros que podemos aqui sumariamente referir e que, não sendo todos filiáveis no trabalho de Michel Henry, com ele devem inevitavelmente ser confrontados. Em primeiro lugar, o livro de Chantal Jaquet intitulado Le Corps. Seguidamente, a reedição revista de uma pequena obra homónima dessa e assinada por Michel Bernard. Finalmente, uma outra reedição : a Anthropologie du corps et modernité, assinada por David Le Breton. Todos eles nos interessam, essencialmente, na medida em que nos podem ajudar a contextualizar uma perspectivação timidamente fenomenológica do corpo e da carne que persiste na cena intelectual francesa. O quarto, Corps et Langage, de Dastur, é talvez o mais significativo de todos porque avalia, pela primeira vez de um modo sistemático, a transição (interrompida pela morte) entre uma filosofia do corpóreo que todos conhecemos bem em Merleau-Ponty, e o crescente interesse deste por uma perspectivação ontológica da problemática da carne que se manifesta nos últimos textos.

Esta distinção – corpo e carne – necessita de ser sublinhada: embora magníficas, as investigações realizadas nos anos 40 do século passado por Merleau-Ponty, como no caso de Phénoménologie de la Perception, centraram-se no corpo e preservaram, no essencial, a integridade deste como ser-no-mundo. A tematização da postura é, a este título exemplar: o corpo não se situaria perante um espaço objectivo, mas estaria antes “ancorado” a uma certa situação onde tarefas actuais ou possíveis são abrangidas pela constituição da postura. Afirmava Merleau-Ponty que «o corpo é eminentemente um espaço expressivo». Ele será, aliás, fonte de toda a expressão. Esta abordagem enraíza-se numa definição intencional da experiência tal como Husserl a formulou no quadro de uma analítica transcendental (em sentido fenomenológico) onde o plano da consciência e o das coisas a ela exteriores se encontram irremediavelmente separados.

Ora, a carne, e esse é já um tema tão claro no póstumo Le Visible et l’Invisible, pode ser entendida como o ser que contém em si a sua negação, cortando-se aqui toda a concepção sartriana da negatividade exterior ao próprio ser. Torna-se, assim, indispensável distinguir as problemáticas do “corpo próprio”, presentes nas primeiras obras de Merleau-Ponty, com aquilo que, nos últimos anos, passará a ser por ele designado como “carne”. Na carne, o sujeito pode aceder à experiência fundamental da reversibilidade entre aquilo que é sentido e aquele que sente. Merleau-Ponty dá-lhe um nome proveniente da poética (e da erótica): o “quiasma”.

 

Se mundo e carne são definidos, até aqui, como entrelaçados ou separados, a qualquer um deles é retirado um estatuto predominante na obra que constitui o ponto de chegada desta breve resenha: Le Phénomène Érotique. É ao amor, mas ao amor que recusa estirar-se entre eros e agapé, que aqui é atribuído o lugar axial. Porque “um conceito de amor deve poder devolver uma racionalidade a tudo aquilo que o pensamento não erótico desqualifica como irracional”[5]. Em Marion, esta acepção do amor é, numa tradução voluntariamente “bárbara”, uma “tomada de carne” (une prise de chair) que funciona como uma tomada de consciência. O seu aqui é, desde logo, um lá que reafirma a contradição do amor: a sua sempre excessiva inscrição no mundo; a sua sempre insuficiente marca carnal. Mas para o amante (e este é um livro de fenomenologia habitado por figuras) esse excesso inquieta, porque a inscrição nunca se faz horizonte. E essa insuficiência da carne desespera, porque a carne move-se na temporalidade do que, estando vivo, esbate, esconde ou afasta a marca do amor. Só há amplexo amoroso na medida em que este estreite, na diferença, carne e corpo.

O que há de mais admirável neste texto é a descrição de como o amor comporta a destruição de um cálculo, do cálculo irrisório do ego que avança armado de uma razão para amar. O amante traz a diferença à troca amorosa, assim a desqualificando enquanto troca que não seja a troca incalculável da carne. Porque, ao contrário do corpo, a carne é privação na dor e doação no prazer. A posse da carne de um outro, não é equivalente à posse do seu corpo. Entrar na sua carne faz com que o amante abandone o mundo. Daí que Marion possa escrever: “Não basta limitar a um contacto, por mais ténue que seja, a contiguidade de dois corpos físicos para aí fazer aparecer duas carnes; permanecer-se-ia ainda no mundo, como se se estivesse numa improvável zona fronteiriça entre aquilo que lhe pertence e aquilo que já não lhe pertence. Mesmo se só uma carne toca um corpo (enquanto que corpo algum vez alguma tocou outro corpo), por essa razão nem mesmo uma carne toca uma carne, na medida em que a primeira imediatamente se apaga e se dissipa diante desta”[6].

Duplo percurso fascinante este: radical redução erótica que se distancia infinitamente das reduções ao erótico que marcam o tempo das imagens; radical desmontagem de uma fenomenologia que só admitia figuras suspensas no phainomenon seco e vazio de onde estava arredada toda a impressão, toda a hylé, aberta pela estranheza carnal.

Traduza-se urgentemente.

 

 

Referências Bibliográficas

 

Jean-Luc MARION, Le Phénomène érotique, Paris, Grasset, 2003.

Michel HENRY, Incarnation, Une Philosophie de la Chair, Paris, Seuil, 2000.

Michel BERNARD, Le Corps, Paris, Seuil, 2002

David LE BRETON, Anthropologie du Corps et Modernité, Paris, PUF, 2001

Françoise DASTUR, Corps et Langage, essais sur Merleau-Ponty, Encre Marine, 2002

Chantal JAQUET,  Le Corps, Paris, PUF, 2001



[1] HENRY, Michel, Incarnation.

[2] Id., Ibid., p. 313.

[3] Id., Ibid., p. 122.

[4] Id., Ibid., p. 190.

[5] MARION, Jean-Luc, Le Phénomène Érotique, p. 15.

[6] Id., Ibid., p. 189.