Uma das razões pelas quais
o design se vem tornando uma questão fundamental
na cultura contemporânea é, certamente, a do seu carácter
expansivo, para não dizer mesmo, a do seu carácter imperativo.
O reconhecimento deste facto traz consigo, não apenas desconfianças
na relação do design com outros domínios e
práticas culturais (como tradicionalmente foi acontecendo
na sua relação com a arte e com a técnica), mas também, inquietações
internas ao próprio domínio do design e dos seus
operadores. Inquietações a respeito da sua natureza e especificidade.
A hipótese de que parto é a de que estamos a aproximar-nos
de um momento de transformação radical da nossa cultura, que
poderíamos designar como a entrada numa era do «design
total». Tal não significa apenas o reconhecimento usual de
que tudo ou quase tudo vai entrando na sofisticação de uma
congeminação estética e funcional, como acontece, hoje em
dia, com o mais insignificante objecto, utensílio, aparelho
ou máquina. De facto, o reconhecimento do carácter crescentemente
expansivo do design é, em geral, identificado
com uma ascenção de quase todas as coisas a uma discursividade
social e cultural. Mas, o que chamo «design
total» é, inversamente, o processo pelo qual as as produções
e realizações da cultura tendem apresentar-se como afectadas
por uma quase inevitabilidade e imediaticidade próprias da
natureza. A era do «design total» será, pois,
a era onde tudo ou quase tudo parecerá ser o resultado de
uma quase história natural, sendo ao mesmo tempo, contudo,
inteiramente intencionado, inteiramente concebido e inteiramente
desenhado. Ou seja, a cultura, no seu estado de «design
total» é a cultura na era do apagamento da fronteira entre
natural e arificial, o momento em que, aquilo que é inteiramente
intencionado pelo homem, tenderá a apresentar-se como puramente
natural.
Na verdade, esta hipótese vai ao encontro do próprio sentido
da palavra «design», aparentada com a ideia
de iludir enganar ou os obstáculos que se apresentam à acção
do homem, já que «design» (quer como nome
quer como verbo) significa não apenas intencionar ,
visar segundo um plano, mas também esboçar com sucesso uma
simulação de algo sobre o qual possuímos um conjunto de intenções.
É neste plano que a ideia de design mais intimamente
se reune às noções de arte, de técnica (techne)
e, ainda, de mecânica e de máquina, aproximáveis,
todas elas de um pensamento artificioso que caracteriza o
homem como artifex e ser de cultura.
Nesta perspectiva as palavras, aparentemente exageradas de
Vilém Flusser em Philosophy of design , ganham
pleno sentido: «This is the design that is the
basis of all culture: to deceive nature by means of technology,
to replace what is natural with what is artifiical and build
a machine out of which there comes a god who is ourselves.
In short: the design behind all culture has to be
deceptive enough to turn mere mammals conditionel by nature
into free artists»[1]
A era do «design total» é a era da plena revelação
deste carácter factício ou artificial da cultura, a era da
crença quase absoluta no poder criativo do homem, o que significa,
também, a era da libertação radical da potência da técnica
e do domínio desta sobre a natureza. «Being a human being
- como diz ainda Flusser - is a design against
nature», e um tal pensamento parece conter cada vez maior
plausibilidade.
Numa perspectiva de confiança humanista na docilidade instumental
do conhecimento tecnico-científico, que alimentou grande parte
da aventura moderna, era possível pensar ainda, como Vico,
que conhecemos ou compreendemos melhor aquilo que precisamente
fazemos ou realizamos nós mesmos (verum ipsum factum,
dizia Vico)[2] .
Mas, a acelaração do progresso técnico,
sobretudo a partir do século XIX, assim como alguns
dos seus efeitos problemáticos sobre a vida, touxe
consigo a impressão quase generalizada de que a técnica
corresponde a uma espécie de processo autónomo,
processo pelo qual seríamos arrastados e cuja natureza
escaparia na verdade aos desígnios e finalidades estabelecidos
pelo homem, algo que alguns filósofos acabarão
por descrever como a realização impensada de
uma potência libertada pela metafísica ocidental,
mas não controlável ou pilotável pela
sua ética, pela sua moral, ou por qualquer outra filosofia
prática. Neste seu movimento, a técnica estaria
assim mais próxima desse outro do humano que é
a natureza, quer como algo que mantém para nós
enigmas essenciais, quer como algo que representa para o humano
uma ameaça tão importante como foi ancestralmente
a da própria natureza. Na verdade, grande parte da
reflexão sobre alguns importantes domínios da
tecno-ciência contemporânea tem sido feita sob
o signo do fim do humano, ou do que alguns designam
como o "trans-humano" ou o "pós-humano",
nomeadamente diante das novas possibilidades de manipulação
e design da vida, em concorrência
com a própria natureza [3].
Ainda que esta perspectiva seja abraçada por alguns
com entusiasmo, senão mesmo com euforia, não
é possível iludir, no mínimo uma inquietação
justificada: aquilo que estamos em vias de realizar e de alcançar
como novas conquistas e nova etapa da cultura humana apresenta-se-nos
como imensamente estranho ou incomensurável com a própria
ideia de humano, contradizendo o princípio de Vico,
ou ainda a velha máxima de Terêncio: "nada
do que é humano me é estranho". Na era
do "design total" um estranho
paradoxo parece pois instalar-se : a dominação
artificiosa dos mistérios da natureza não torna
necessariamente o mundo mais humano ou mais familiar, como
obra nossa, mas sim, de novo, estranho e inquietante (senão
mesmo mágico), quase tão inapreensível
e inapelável como uma nova natureza. O humano, que
nos habituámos a pensar como um processo continuado
de incrustração continuada da cultura na natureza,
parece debater-se hoje com a imposição cultural
ou artificial de uma nova natureza.
Na verdade, foi sempre nesta concorrência entre natureza
e cultura que esteve fixado o pensamento da antropologia moderna.
Aquilo a que chamamos "natureza humana"
constitui-se, não sobre um conjunto de atributos essenciais
conferidos pela história natural, mas sobre uma ferida
ontológica : aquela que precisamente une e separa "natureza"
e "humano". Toda a antropologia confirma, de facto,
que o homem é essencialmente artifício e invenção
em concorrência com a própria inventividade e
o próprio desígnio da natureza. É a natureza,
dizem-nos desde há muito, que o homem teve necessariamente
que transcender, em alguma medida, para surgir como homem.
O problema do humano é assim o problema do nosso lugar
e da nossa acção no seio de todas as coisas
existentes. E a resposta a este problema veio, desde logo,
por meio de um conjunto de gestos que visavam e implicavam
em si a natureza, operando transformações decisivas
no seu seio, e aprofundavam a cisão do homem relativamente
a ela. São esses gestos que dão figura ao humano
e, simultanemente, transfiguram a natureza. O gesto técnico
surge pois como decisivo, desde tempos imemoriais, para uma
determinação do humano e da sua relação
à natureza. E, por isso, foi desde cedo evidente, para
uma antropologia filosófica, que o crescente desenvolvimento
da técnica poderia vir a revelá-la como uma
"segunda natureza".
O olhar da moderna paleontologia confirma esta visão,
transformando-a mesmo numa espécie de narrativa fundadora:
a narrativa de um homem que surge, verdadeiramente, quando
surge a oposição do polegar relativamente aos
outros dedos da mão, isto é, quando surge a
capacidade de preensão e manipulação
do mundo à sua volta, concomitante, por sua vez, ao
surgimento da própria capacidade simbólica.
Antes mesmo que esta mão e esta racionalidade simbólica
iniciem uma história de radical transformação
da natureza, esta sofre, por esta simples ocorrência,
uma transfiguração fundamental, ainda que inicialmente
invisível: a transfiguração de coisa
que nos faz face em coisa manipulável, ou como dirá
um dia Heidegger, de coisa vorhanden em coisa Zuhanden.
Para o olhar dos modernos não há pois invenção
do humano sem reinvenção da natureza e, por
isso, todo o mistério da originação do
humano aparece como indissociável da oposição
do artifício e do desígnio (design(
humanos a uma plenitude dada da natureza.
A oposição entre natural e artificial
é assim o operador de todo um conjunto de passagens
e de transgressões que nos revelam o homem como um
ser arrancado à sua mera verdade física e biológica,
sem contudo a poder verdadeiramente abondonar. O homem é
assim um ser de fronteira e a transformação
criativa do mundo, por acção deliberada do homem
consiste na inscrição em todas as coisas dessa
mesma fronteira entre natural e artificial: a exibição
na pedra ou na madeira de uma forma intecnionada, a imposição
às águas de um rio de um curso deliberado, etc...
O modo de ser daquilo a que chamamos "mundo" ou
"humano" parece pois, desde sempre, indissociável
de uma mesma ferida (partilha ?( ontológica, inscrita
no coração das coisas, que repete a própria
cesura do homem. Esta cesura representa a todo o momento o
que permite ao homem a transcendência do que lhe aparece
como dado, mas também o peso desse dado sobre a invenção
de outros possíveis, isto é, o peso da criatura
sobre o gesto criador.
A acreditarmos nas descrições e previsões
actuais acerca das possibilidades de acção e
de intervenção do homem sobre todas as coisas,
nomeadamente sobre a vida e sobre si mesmo, dir-se-á
estar em constituição uma nova ontologia em
que tal cesura se apagaria: uma ontologia do artificial, isto
é, um modo de ser inteiramente intencionado pelo homem.
O apagamento da cesura do natural e do artificial faria com
que tudo não fosse senão testemunho do homem,
num certo sentido, portanto, "demasiadamente humano"
para ser ainda do homem e por isso, talvez, trans-humano
ou pós-humano. A ontologia do artificial requer
uma onturgia que o próprio humano não parece
suportar e que recai então sobre a técnica,
como se esta se emancipasse da própria esfera do humano
e da cesura que nela a inscreve.
A possibilidade de um universo artificial parece depender
assim, inteiramente, da hipótese de um estatuto autónomo
e ontúrgico da tecno-ciência moderna. Uma tal
possibilidade assenta, por sua vez, num pressuposto propriamente
metafísico, o qual, em outros momentos, foi da máxima
importância para a ontologia, para a cosmologia, para
a teologia cristã e mesmo para a própria história
natural - o príncipio de "plenitude", conforme
relembra, Hermínio Martins. Segundo o princípio
metafísico da plenitude, tudo o que é possível
é, foi, ou será actual, isto é, realizado.
Princípio transferido agora para a técnica,
como "Princípio de Plenitude Tecnológica",
diz Hermínio Martins [4].
Compreende-se, assim, esse sentimento fundamental do nosso
tempo: o sentimento de que a técnica é algo
que nos empurra, nos conduz como um destino (e não
como um desígnio), algo que se substitui à própria
história ou a toda a teleologia, algo perante o qual
todos os debates, nomeadamente éticos ou simplesmente
metodológicos, acerca da imposição de
determinadas finalidades ou de determinados usos à
técnica parecem, no mínimo, extremamente frágeis
[5].
A assunção deste "Princípio de Plenitude
Tecnológica" parece estar a ser enunciado, de
facto, pelos programas da tecno-ciência actual: programas
radicais de substituição de realidades naturais
em vários domínios (biológico, químico
e geoquímico), capazes de manter a adequação
de um meio ambiente crescentemente depauperado ; programas
hibridação, sobretudo no domínio da diversidade
biológica ; e, ainda, como metodologia de simulação,
ou como virtualização, programas crescentemente
abrangentes de informacionalização dos fenómenos
naturais. Como diz Hermínio Martins: uma "prodigiosa
fertilidade de produção de novos seres, não
só físicos, químicos, biológicos,
mas híbridos, de várias ordens e graus de hibricidade,
em que tudo se pode combinar e articular, superando as barreiras
dentro dos taxa biológicos, dos cinco reinos dos seres
vivos (na classificação de Lynn Margulis que
já entrou para os manuais), ou de reinos da natureza;
hibricidade realizável em grande parte pelo prisma
da informação em, que todos os seres vivos se
encaram como sistemas de processamento de informação,
comensuráveis pelo código genético, e
mais geralmente pela aritmética binária e a
digitalização, que torna possível a sua
manipulação e portanto a sua miscigenação
sem limites, em princípio" [6].
Uma verdadeira onturgia [7],
portanto, a qual, em última análise, não
teria senão paralelo na própria "criatividade
cósmica endógena" [8]
do "Big Bang", aquela que fez acidentalmente
nascer a própria história natural. Paralelo,
anunciado afinal, pela ideia do artificial como "segunda
natureza", ele próprio resultante dessa espécie
de acidente metafísico que é o da libertação
sem precedentes da inventividade, autonomia e poetência
da técnica, na modernidade. Se o escândalo primordial
foi o de arrancarmos ao acidente que é natureza a possibilidade
do artifício, o escândalo de hoje parece ser
o de acidentarmos pelo artifício uma nova natureza,
sobretudo, o escândalo de o de o fazermos (e por certo
será com acidentes), no domínio da vida (essa
que foi, dizem-nos, uma quase improbabilidade) . Na verdade,
este acidente, ou estes acidentes (possivelmente em cadeia)
não têm propriamente hora marcada, embora, pela
futurologia que caracteriza os diagnósticos do presente,
eles possam estar já a acontecer. Em todo o caso, é
pelo menos indesmentível que o artifical tem vindo
a invadir a textura e a nomenclatura do existente. Há
muito que a extensão e a profundidade da dominação
física, química, biofísica e bioquímica
da matéria permitiu, por exemplo, a emergência
de novas substâncias isoladas e, sobretudo, de novas
sínteses, inexistentes enquanto tais na natureza (por
exemplo, o famoso plástico, certo tipo de substâncias
químicas enquanto elementos isolados ou associadas
em novos compostos, como acontece em inúmeros fármacos,
etc..) com as quais o mercado invadiu, aliás, o nosso
quotidiano. Anunciados, incialmente, com ruidoso entusiasmo,
os novos produtos sintéticos, são hoje dominantes
em todas as áreas do consumo, apesar da sua prodigiosa
composição (sintética) ser agora remetida
para minúsculas legendas de embalagem, temerosas das
das nostalgias do "100% natural". Os termos "artifical"
e "sintético", cuja afinidade importa interrogar,
não têm parado de marcar presença à
nossa volta, nomeadamente no universo do digital, onde readquirem,
por sua vez, uma nova euforia: falamos de sintetizadores de
som, de imagens de síntese e, até mesmo, de
Inteligência Artificial, de Realidade Artificial e de
Vida Artificial, sugerindo estas últimas possibilidades,
de facto, a perspectiva de um pan-arteficialismo de novo tipo.
Ora, diante da possibilidade de tudo se poder converter em
artifical, a distinção entre natural e artificial
deixa verdadeiramente de ter sentido e revela-se alias como
uma má oposição. Uma ontologia centrada
sobre a distinção entre natural e artifical,
falha o essencial desta nova situação: ou seja,
o facto de ela própria oferecer uma condição
comum a todas as coisas, tão radicalmente comum quanto
a da própria natureza, pois também ela atravessa
o orgânico e o não orgânico, o humano e
o não-humano e, ainda, o real e o informacional. Em
todos estes domínios parece viável a emergência
de novas sintetizações e resintetizações
tecnobiológicas, tecnoquímicas e tecnofísicas.
Assim sendo, é numa nova ontologia que nos encontramos
lançados ou, como anunciava desde há muito a
antropologia filosófica, "nova natureza",
de facto, numa nova condição comun de partida.
Em suma, trata-se de numa nova queda na physis, a
que é preciso de novo arrancar o humano, e não,
como pensamos ainda preservá-lo.
Esta queda na natureza manifesta-se, aliás, pelo facto
de a técnica permacer de olhos postos nas qualidades,
nas formas e nas ocorrências da natureza. Mais do que
uma transcendência da natureza o que a técnica
nos propõe, com enorme sistematicidade, é a
sua imitação radical, isto é, uma imitação
que, desta vez, pretende dispensar toda a mediação.
Por isso domina, mesmo nos programas mais ousados das ciências
que visam biologicamente ou informacionalmente a vida, uma
terminologia efectivamente ligada à mimesis:
"clonagem", "replicação",
"simulação". Independentemente das
novas realidades e até dos novos seres que possamos
ver surgir destes programas, trata-se de uma criatividade
cujo fundamento é, ainda, o da imitação,
pelo menos formal, de processos e movimentos da vida. As sínteses
que caracterizam as ocorrências espontâneas ou
as produções verdadeiramente originárias
da natureza, são aqui, porém, o efeito ilusório
de um exaustivo mapeamento analítico, complementado
de minuciosos procedimentos construtivistas e composicionais:
a clonagem é possível graças ao mapeamento
exaustivo do genoma humano; as estruturas rizomáticas
das redes tecnológicas da informação,
têm por base uma realidade discontínua de pontos;
e tal como a sequência de frames é o que permite
a montagem cinematográfica e essa extraordinária
ilusão de vida que é o cinema; as unidades lógico-matemáticas
são o que permitem as novas simulações
das imagens digitais. O ponto de partida de todo o efeito
de síntese tecnológica é o descontínuo
e o cálculo do descontínuo, ou o que designamos
hoje como a informação e processamento da informação,
em condições de extrema acelaração.
Os efeitos simulacrais mais ousados que se esperam actualmente
dos sistemas de realidade virtual parecem depender na sua
maior parte de uma aceleração ainda maior deste
processamento, e por isso, se investe já, hoje, na
possibilidade matemática de uma nova geração
de computadores.
Se há uma nova ontologia do artifical ela é
assim, por ora, uma ontologia fraca, na medida em que procede
ainda por análise e recomposição do existente,
imitando os efeitos sintéticos da natureza mas não,
verdadeiramente, os seus procedimentos, estando talvez ainda
longe do que alguns tomam como uma "auto-poiesis".
A sua potência manifesta-se, contudo, na forma como
os seus procedimentos parecem atravessar e baralhar todos
domínios, ameaçando dissolver, não apenas
a fronteira entre o que é natural e o que é
fabricado pelo homem, mas também as distinções
precisas que estabelecemos no seio da natureza: a distinção
entre seres orgânicos e não orgânicos,
entre seres animados e inanimados, entre seres inteligentes
e não inteligentes, entre seres que sentem e seres
que não sentem, etc... Estas séries compõem,
no seio do existente, linhagens e hierarquias bem distintas
de atributos e possibilidades. O que chamamos "homem"
tem sido pensado como um cruzamento preciso de alguns destes
atributos, organizando à sua volta uma certa cosmogonia.
O limite inferior desta cosmogonia era o dos animais e o seu
imite superior o de Deus. Mas se a distinção
entre Deus e o homem e entre o homem e o animal são
distinções fundantes de toda a nossa cultura,
é também verdade que o homem se pensou, necessariamente,
a partir delas, como sendo, quer uma "espécie
de animal", quer, também, uma "espécie
de Deus" ou um "quase Deus" [9]
. Na verdade o homem é o único ser que atravessa
toda a extensão desta cosmogonia, desde o seu limiar
inferior até ao seu limiar superior e, por isso, a
possibilidade de um pós-humano afecta não apenas
uma visão do homem mas, necessariamente, a visão
de tudo à sua volta. Nesta travessia, só as
coisas, as coisas inertes e inanimadas, pareciam constiutir
a verdadeira alteridade do humano.
Ora, após muitos milhares de anos de confronto decisivo
com os animais e alguns milénios também de confronto
com os Deuses, o confronto humano de hoje parece ser sobretudo
um confronto com as coisas. Como diz Mario Perniola num ensaio
que intitula O Sexappeal do inorgânico (segundo
uma expressão de W. Benjamin): "agora é
a coisa que atrai toda a nossa atenção, (...)
que se converteu ao mesmo tempo em centro de todas as inquietações
e em promessa de felicidade" [10].
No limite, estaríamos diante de um devir coisa do mundo,
que os modernos precisamente denunciaram por várias
formas, como uma "reificação", o que
queria geralmente dizer, alienação do humano.
A visão tecnológica de hoje prossegue esta imagem
como uma alienação dos atributos do humano,
que poderiam agora ser redistribuídos pelas coisas.
Tudo não seriam senão coisas, mas elas poderiam
chamar a si uma infinidade de atributos que, em princípio,
lhes são estranhos: organicidade, vida, movimento,
inteligência, sensibilidade. A possibilidade de um devir
coisa do humano, e de um devir humano da coisa, contém
por inerência uma nova cosmogonia. Ao distribuir indistintamente
os atributos do homem, esta nova cosmogonia surge ainda dominada
pela ideia do humano, mas deixa de poder concebê-lo
como a figura organizadora e central dessa hierarquia vertical
que nos situava num ponto da escala entre a vida e a sua transcendência
divina. A nova cosmogonia lança tudo na horizontalidade,
distribuindo o homem aos pedaços pelas coisas. Coisas
quase vivas, quase humanas, e até quase mágicas,
como Deuses. Num mundo de coisas, o design torna-se
a disciplina conceptora por excelência, distribuindo
agora, para além de formas e funcionalidades, capacidades,
qualidades e finalidades. A ficção científica
há muito que se entretém a fabricar uma nova
etologia imaginária de seres artificiais (robots, andróides,
cyborgs) que não são verdadeiramente classificáveis
como espécies, mas sim como coisas, através
dos seus modelos, gamas, patentes, séries de fabricação,
etc...
A oposição entre organismo e mecanismo, na qual
o pensamento moderno tendeu a fixar-se, desde a invenção
dos primeiros mecanismos automáticos, foi o primeiro
pólo aglutinador da comparação entre
os homens e as coisas. O organismo, realidade a que a biologia
moderna deu um lugar central, importava, antes demais, como
grande imagem da vida, da sua organização e
da sua complexidade, e como possibilidade de esclarecimento
do seu mistério. Mas, o que começou a tornar-se
verdadeiramente obsediante, nomeadamente entre o séc.
XVII e e séc. XIX, foi a possibilidade de compreender
e controlar a fronteira entre vida e não vida, como
mostram as miragens literárias de criação
de seres artificiais, as ficções sobre os vampiros
(seres que não estão nem verdadeiramente vivos
nem verdadeiramente mortos) e, finalmente, o desejo de animar
as imagens, com o cinema. A oposição fundante
desta nova cosmogonia é a oposição entre
animado e inanimado. Dominada a passagem entre um e outro,
abrir-se-ía à coisa a travessia de todos os
reinos: do natural, do humano e do sobrenatural. A possibilidade
de redesenhar a vida, desde o mais elementar movimento (kinesis)
que a expressa, até ao mais inefável ânimo
que a sustem, é a miragem da enorme galeria de seres
fantásticos que estranhamente povoam o imaginário
da entrada na era da técnica moderna, e de que são
especimens inesquecíveis o Frankenstein de
Mary Shelley e a Eva Futura de Villier.
Mais do que os meandros biológicos da vida, em que
ainda hoje se embrenham as discussões sobre o corpo
"orgânico" ou "pós-orgânico",
são os meandros metafísicos da vida que estão
em causa, nesta nova comparação entre o ser
humano e a coisa. Aliás, as imagens prospectivas de
uma "vida articial" parecem dispensar crescentemente
a ideia de um corpo, e mais ainda de uma carne. As coisas
cobiçam os atributos do humano manifestando precisamente
uma pretensão ao que nele há de mais intangível
- a sua alma, ou aquilo que pensámos sob a sua égide
. O mundo artificial do mecanismo, centrado sobre as compatibilidades
e incompatibilidades entre a coisa e o corpo, está
a dar decisivamente lugar a uma nova miragem: a tecnologia
do animismo, da coisa que pensa, da coisa que sente, da coisa
que simula as mais elevadas capacidades da vida humana. Esta
tecnologia, de vocação "psicadélica"
promete, através de uma inteligência artificial
e de uma sensibilidade artificial, animar um mundo imaterial,
para o qual poderíamos fazer transitar muitas das nossas
experiências e acrescentar-lhes ainda um menu à
la carte. As ficções destas novas animações
inquietam e seduzem inevitavelmente o mundo animado do cinema,
como por exemplo, o universo de Cronenberg em "Videodrome"
ou em "Existenz". Por mais imateriais que
sejam os suportes deste novo mundo de coisas animadas, elas
não deixam por isso de ser coisas e de ser coisas que
manifestam antes de mais o seu modo moderno de ser coisa -
o da sua disponibilidade para a manipulação,
que o virtual tecnológico aparentemente vem acentuar,
através de um certo programa anunciado por termos como
"interactividade", "conectividade", "hibridação".
Uma tal disponibilização do ser confirma precisamente
um certo estado moderno da coisa e a sua radical generalização.
Coisas disponibilizáveis e armazenáveis são,
também hoje, o conhecimento, as emoções
e as impressões que encontram nas inúmeras espécies
de ligação tecnológica uma espécie
de dispensador universal de experiências. Por isso o
design se aplica já hoje a desenhar essas
experiências, às quais, como coisas, virão
a corresponder registos de patentes.
Na verdade, se tudo não são senão coisas,
a ontologia só pode regressar, como diz Wilèm
Flusser, à distinção primordial entre
coisa e não coisa [11],
debate por ora aparentemente fixado na oposição
entre "real" e "virtual" (tecnológico).
Mas muitas outras distinções, aparentemente
modestas e até banais, poderão também
revelar-se como distinções de valor para um
princípio de orientação neste mundo de
coisas. A distinção entre coisas prestáveis
e imprestáveis (paralela à do útil e
do inútil), a distinção entre coisas
e dejectos, a distinção entre coisas duras e
moles (ou entre hardware e software), a
distinção entre programas e coisas programadas
e, também, entre programas e metaprogramas (ainda mais
invisíveis) ou, ainda, a distinção fundamental
entre jogo e não jogo, distinção que
o simples gesto já não permite fazer, quando,
por exemplo, se trata apenas de carregar num botão
- o qual pode ser o de uma máquina fotográfica,
o on ou o off de uma televisão, o
comando de um brinquedo electrónico, ou o disparador
de uma arma controlada por um sistema informático.
O redescobrir de uma nova cultura, nesta nova physis
do artifical, só pode pois ser modesto, embora extremamento
atento e acutilante, pronto a distinguir e a discernir, de
novo o que pode, ou não pode, promover nela o humano.
Nenhuma reinvenção do humano será arrancada
à pura imaginação criativa, à
pura vontade de demiurgia, mas sim a muitos gestos, pequenos
e grandes em que, a todo o momento, implicamos um destino.
Tal aventura já começou e espera de cada um
de nós um heroismo modesto. A cultura do "design
total", enquanto nova physis, deve suscitar
assim uma nova capacidade quase elementar de nos movermos
e nos orientarmos por entre as coisas, de que talvez possamos
esperar então, um dia, uma reinvenção
do humano. Uma nova animalidade, talvez, ou, pelo menos, num
certo sentido, uma nova ferocidade, que implica sabermos,
atender e proteger de facto, na urgência e no desprovimento,
o que é verdadeiramente essencial. De novo, como primordialmente
acontecia no seio da natureza, o humano parece ser uma frágil
condição, sem verdadeiras garantias. Neste sentido,
a nova cosmogonia horizontal em que estamos lançados
só encontra de facto paralelo nessa situação
absolutamente primeva da história humana, quando não
estava ainda garantida a supremacia do homem sobre os os outros
seres, nem inventada a supremacia de nenhum Deus sobre os
homens. É neste sentido que uma tal condição
merece, sem dúvida, o nome de uma nova natureza. Das
novas coisas, não tenhamos a ilusão de serem
meros objectos, sobre os quais temos ainda a confortável
distância da representação ou da instrumentalidade
; e dos novos designers não acreditemos de
imediato que sejam novos deuses ou artifexes supremos.
[1] Vilém
Flusser, "About the word design", in The shape
of Things. Philosophy of design (1993), London, Reaktion
Books, 1997, p. 19
[2] Cf
Hemínio Martins, "Dois Princípios filosóficos
e a Técnica", Cadernos do Centro de Estudos de
Comunicação e Linguagens (no prelo)
[3] V.
Flusser, "About the word design" in op.cit.,
p. 19
[4] Cf.
Hermínio Martins, idem.
[5] O
Princípio de Plenitude tecnologica corresponderia assim
ao culminar nihilista da própria metafísica,
perante o qualquer imperativo da vontade só poderia
surgir hoje, segundo Hermínio Martins, como "nontade",
e isto, não como contrário da vontade (inércia,
accidie, indecisão ou abulia) mas como liberdade de
não fazer tudo o que é possível fazer,
como "não-fazer consciente, deliberado, reflectido":
como "nontade da vontade" (Cf. Hermínio Martins,
idem)
[6] Cf
Hermínio Martins, idem.
[7] Cf
Hermínio Martins, idem.
[8] Cf
Hermínio Martins, idem,.
[9] Veja-se
Mario Perniola, "Sentimentos e coisas", in Il
Sex Appeal dell'Inorganico (1994): "O jogo das semelhanças
e das diversidades, das afinidades e das divergências,
das correspondências e das disparidades, que regeu a
comparação com Deus e o homem, e entre o homem
e o animal conclui-se por um empate: o homem é quase
Deus e quase animal; Deus e o animal são quase homens".
[10]
Mario Perniola, op.cit., p. 12.
[11]
Cf. Wilèm Flusser, Dinge und Undinge (1993)
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