A perturbação da igualdade (ou os
clones à nossa volta)
Uma das funções básicas do cérebro
é o reconhecimento. Saber se já se viu antes o que
se viu, separar entre conhecido e desconhecido, discriminar entre
céu e mar, terra e água, ali e além. Para isso
é necessário possuir a percepção, distinguir
sinal e ruído, fundo e objecto, regra e excepção,
velho e novo, rotina e criação, cara e multidão,
isolar uma informação e compará-la com uma
história, uma memória.
O reconhecimento é uma condição essencial da
segurança. Identificar o estranho, o perigo, a mancha na
paisagem, o ruído no silêncio, o cheiro no vento, a
marca na árvore, a pegada na terra e ligar-lhe um sentimento,
uma história, inseri-lo numa narrativa passada e futura.
O nosso cérebro é uma máquina de identificar
padrões, semelhanças e diferenças, repetições
e ciclos, grupos e classes. É com isto que fazemos o mundo
que vive dentro da nossa cabeça. Fazemo-lo com objectos,
com pessoas, com conceitos, com sensações. Somos uma
máquina de evocar memórias, onde cada informação
possui imensas notas de rodapé e faz parte de uma teia, um
hipertexto de histórias passadas, de humores e emoções,
de classificações. Comparamos essas histórias
sem cessar e depois classificamos as próprias comparações,
as relações entre as coisas tornam-se elas próprias
objecto de análise e comparação, de classificação
e padronização, de agrupamento.
Pensar é distinguir, separar e organizar.
Esta é a razão essencial porque o clone é algo
tão perturbador. As diferenças do mundo são
essenciais à identificação e esta é
essencial à segurança. Se as características
do mundo à nossa volta se tornam indistinguíveis,
inclassificáveis, se as coisas que são diferentes
aparecem como iguais, o que nos garante que podemos continuar a
reconhecer o mundo, a escolher e a decidir? Como podemos continuar
a viver nele? É a própria realidade material do mundo,
a sua existência como coisa objectiva que é posta em
causa e, com elas, a nossa própria realidade.
Um mundo onde uma rua pode ser igual a outra, onde o meu vizinho
pode ser igual ao meu inimigo, onde o cheiro do pão é
igual ao cheiro do metropolitano é um mundo de loucura, onde
tudo e nada é possível, onde não há
razão, o mundo do caos.
O gémeo já é perturbador, mas é uma
excepção, um acidente, uma raridade. Um acidente que
pode ser esquecido ou ignorado e que tem limites estreitos. Dois
gémeos? Três? Quatro? Além de que, quantos mais
são os gémeos, menos parecidos são.
Uma pessoa é uma singularidade, um marco geodésico,
uma âncora na realidade, uma referência, mas a eventual
ubiquidade do clone gera um labirinto, uma sopa de letras sem sentido.
A perturbação do clone vem do facto de que não
sabemos se este é mesmo este ou aquele ou mesmo aqueloutro.
A fragilidade da semelhança (ou os clones
entre nós)
É verdade que a sociedade democrática
louva a igualdade desde a Revolução Francesa, mas
essa igualdade (de direitos) é, no fundo, a garantia da diferença,
da variedade, da sociodiversidade. Não um apego ou uma defesa
da igualdade, mas a garantia de que todos (variedade) podem chegar
a qualquer sítio.
A diversidade é um valor em termos biológicos. A biodiversidade
no seio de uma população garante que essa população
(enquanto população) pode resistir a diferentes agressões.
Alguns indivíduos podem ser mortos por uma infecção,
mas não todos. Enquanto que a igualdade genética (uma
comunidade de clones) constituiria um risco: um infecção
capaz de destruir um indivíduo poderia destruir toda a comunidade.
Existem razões biológicas para preferir a diversidade
à igualdade.
Se todos procuramos a segurança do igual e do conhecido,
procuramos também a excitação do novo e do
diferente. A igualdade promete-nos a segurança, mas a diferença
garante-nos a liberdade.
O homem é o único animal que procura activamente o
diferente e que tenta inventá-lo através da arte,
do pensamento, da ciência, da técnica. A liberdade
é o caminho em direcção à diferença.
O pecado da criação (ou os clones
feitos por nós)
A igualdade do clone tem um factor suplementar de
perturbação: a artificialidade. A igualdade do clone
é uma igualdade artificial, criada pelo homem, um truque
roubado aos deuses, uma brincadeira de demiurgo que pode correr
mal, como as brincadeiras dos aprendizes de feiticeiros. Confiamos
na Natureza porque ela é velha e sábia, mas o homem
(o "homo technicus" em particular) é demasiado
jovem, atrevido e inexperiente. A Natureza gera pequenas mudanças
e vai-as testando, aos poucos, filtrando pela selecção
o que se revela mais adaptado. É conservadora. O homem descobriu
a capacidade de introduzir roturas, explosões, revoluções.
É disruptivo.
A Natureza sempre existiu e sempre existirá, mas o homem
talvez seja um acidente, pronto a ser varrido à primeira
trangressão das regras cósmicas não escritas
do equilíbrio. Depois de ser expulso do Paraíso por
querer saber tanto como o Deus Omnisciente, será o homem
expulso de novo se tentar criar a mesma criação que
o Deus Criador? E para onde será expulso?
E teremos nós a tentação de olharmos para os
nossos clones como a nossa criação? De cima para baixo?
Os clones que fazemos iguais a nós poderão ser iguais
a nós quando fomos nós que os fizemos?
Não carecem dessa originalidade que é talvez a nossa
alma? Não carecem dessa bênção do acaso
que é talvez a luz da vida?
Os clones são nossos irmãos? Filhos? Motoristas? Escravos?
Rebelar-se-ão porque os desenhámos? Não será
melhor controlá-los de alguma forma? (É que eles poderão
ser iguais, mas todos sabemos que são diferentes.) Representam
o que de melhor há em nós? Serão melhores que
nós? Pensarão que são melhores que nós?
A desvalorização da quantidade (ou
os clones em série)
Se os podemos fazer em série, será
que podem ter o mesmo valor que um indivíduo original? É
como querer vender uma serigrafia pelo preço de uma pintura.
Já sabemos que só são iguais no aspecto, que
são originais em tudo o resto mas... serão? Não
parecem.
E é preciso saber com quem estamos a falar. Os clones podem
ser ilegais, feitos a partir de material genético roubado,
copiado sem autorização, ou só ligeiramente
plagiado: uns olhos, uma queda para o desenho. ("Um senhor
tão educado e afinal era plagiado").
Será conveniente controlar o número de cópias
de um dado ADN, como nas gravuras (pelas melhores razões,
para evitar que um determinado modelo se torne prevalente e reduza
a nossa biodiversidade)?
Claro que um clone é um ser humano, não é um
objecto, mas... O problema não somos nós, são
os outros: todos vão olhar para eles como se tivessem o cabelo
verde ou a pele castanha.
O melhor, pelo sim pelo não, é começar a fazê-los
discretamente, sem dizer nada a ninguém, como se nascessem
pelos métodos tradicionais. Quando chegarem à idade
de compreender contamos-lhes de onde vieram, como um sórdido
segredo de família. Mas é melhor não dizerem
nada a ninguém.
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