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O
auto-retrato está de volta, no trabalho artístico de Cindy Sherman,
contradizendo a tendência no sentido da recusa da delimitação física
e psíquica, através do violento estilhaçamento corporal e da
desfiguração monstruosa do rosto-máscara, patente na obra da fotógrafa
desde as Sex Pictures (1992) e as Horror and Surrealistic
Pictures (1994-1996). Na primeira mostra, em Inglaterra,
inteiramente dedicada à obra de Cindy Sherman, durante sensivelmente
a última década, a exposição na Serpentine Gallery, no passado Verão
quente de Londres (de 3 de Junho a 25 de Agosto), foi acompanhada da
exibição de dez cartazes (Cindy Sherman Billboard Commission),
de grande formato, que correspondem a versões adaptadas de fotos
datadas entre 1983 e 2002, concebidas pela fotógrafa para a estação
de metro de Gloucester Road. A exposição, por sua vez, que
incluiu 60 fotografias, permitia conhecer o mais recente trabalho de
Sherman, nomeadamente a sua série dedicada aos palhaços.
Com
efeito, esta mostra da obra de Sherman organizou-se em torno do núcleo
temático da máscara ou disfarce, dando a primazia ao trabalho fotográfico
centrado na feminilidade e no jogo dos papéis sociais e excluindo
(sendo essa uma das suas lacunas) a sombra agressiva e ilimitada de um
exterior, nomeadamente, tal como este se revela no impulso no sentido
do informe e do abjecto que marca, por exemplo, a série Disasters
(1986-1989). Assim, a exposição traçava uma linha da mimesis
sedutora e simulacral dos Untitled Film Stills (1977-1980), ao
fetichismo do código fotográfico de Pink Robes (1982) e à
provocação dos cânones de beleza instituídos, das séries Fashion
I (1983-84) e Fashion II (1993-1994), passando pelas
experimentações em torno do grotesco dos History Portraits (1989-90)
e desembocando, por fim, a partir do ano de 2000, num aprofundar do género
do retrato, dando privilégio a personagens vulgares e anónimas,
cujos rostos parecem exibir as marcas da ditadura da perfeição e dos
ideais de beleza femininos agora na decadência da idade, que faz
retomar a máscara sob o bisturi das operações plásticas e do
disfarce histérico da maquilhagem, da roupa e acessórios.
Veja-se,
por exemplo, o artificialismo sentimentalista e plástico da mulher de
azul em Untitled #408 (2002), o detalhe do chapéu
de verga que emoldura um rosto estudadamente maquilhado e de expressão
melancólica em Untitled #409
(2002) e a agressividade
exuberante da palhaça de Untitled #412 (2003), que
prende o homem-boneco com uma mão cuja idade trai a infantilidade rígida
do sorriso e do olhar da personagem. Na verdade, parece adensar-se uma
certa tendência kitsch no mais recente trabalho de Sherman,
com a explosão cromática e feérica dos fundos fotográficos,
criados digitalmente através de cores e padrões sintéticos, onde as
personagens exibem cruamente o ditame contemporâneo: “quanto mais
perfeito, mais desfigurado”.
«Under
this mask, another mask, I will never be finished carrying all this
faces»,
escreveu Claude Cahun[1],
fotógrafa surrealista cujo trabalho sobre o tema dos duplos e da
instabilidade do Eu pode ser relacionado com a experimentação de
Cindy Sherman, em torno do desempenho performativo de diferentes papéis.
Com
efeito, à semelhança de Cindy Sherman, Claude Cahun é
simultaneamente sujeito e objecto de um trabalho fotográfico, no qual
«the sense of multiple selves, of masquerade, of gender as a
series of conventions, and also of narcissism (...) prefigures Cindy
Sherman’s photography – the black and white “Untitled Film
Stills” of the late seventies and the color images of the eighties
and nineties which stage stereotypical and historical feminine
identities as self-portraits»[2].
No
entanto, olhando os auto-retratos de Cahun, nomeadamente, a título de
exemplo, Autoportrait (1928) e
Autoportrait (1929-1930),
não podemos deixar de sentir a presença da artista em todas as
fotos, sendo que, de cada vez, ela funde-se na máscara ou no disfarce
para melhor se desnudar, apresentando-nos as várias facetas de uma
identidade complexa, cujo jogo de espelhos serve de exploração e
autoficção, manobra de estranhamento e atentado irónico aos estereótipos
e convenções sociais.
Ora,
no caso de Cindy Sherman, é a própria identidade da artista que se
nega sucessivamente num trabalho de ausência em favor da serialização
alegórica de papéis femininos. Com
efeito, tal como Rochelle Steiner faz notar em «Cast of Characters»:
«Sherman’s works have been considered self-portraits in that
they are, technically, photographs in which she appears. Yet they are
not images of her; (...) Sherman’s work does not establish a
one-to-one relationship between image and original because the
characters she depicts are fictional. That is, the subjects she
portrays in her photographs are her own creations»[3].
Tal
lógica pós-modernista de suspensão do referente, através da
construção de um sistema significante, simultaneamente mimético e
irónico, está patente nas famosas imagens-simulacro de Untitled
Film Stills, que recriam de modo naturalista o universo
feminino dos anos 50/60, levando-nos a acreditar que estamos
diante de fotogramas extraídos de filmes[4].
Três
das seis imagens, exibidas na Serpentine Gallery, permitem-nos
ilustrar alguns dos temas centrais da famosa série a preto e branco.
Assim, em Untitled Film Still #3 (1977), um plano de
tronco dá-nos a ver uma personagem feminina cujo rosto é cortado
acima dos olhos, que fixam tímida e enigmaticamente um ponto fora de
campo. A personagem ostenta uma feminilidade caracterizada de modo
fetichista, com as formas corporais bem modeladas, os seios
pontiagudos e a cintura estreita contornada pelo laço exuberante do
avental e a pontuar a sedução do olhar uma franja loura, num corte
de cabelo estilizado. O cenário é o doméstico, a personagem
prepara-se para lavar a loiça ou foi interrompida aquando a lavagem,
vê-se a pega de um tacho, copos, a embalagem do detergente e um
pequeno frasco de comprimidos ou cápsulas no armário sobre o
lava-loiças. Em Untitled Film Still #10 (1978), o
ambiente doméstico adensa-se, a personagem feminina, ostentando o
mesmo corte de cabelo mas agora com uma cabeleira morena, apanha
alguns produtos de mercearia que se espalharam no chão da cozinha. A
mini-saia desnuda-lhe as
pernas e os olhos, invadidos pela sombra negra da maquilhagem,
insistem num olhar sério e agressivo para um ponto situado à
direita, fora de campo. Finalmente, em Untitled Film Still #56 (1980),
vemos um grande plano da personagem feminina, que se mira ao espelho
com o olhar narcísico digno de uma diva cinematográfica.
As
personagens femininas suspensas nos «instantâneos» de Sherman, «A
tímida sedutora», «A rapariga reactiva», «a rapariga narcísica»,
surgem assim essencialmente enquanto cópias dos modelos especulares
projectados pelos media expondo, de modo simultaneamente mimético
e crítico[5],
a identificação do sujeito com uma imagem enquanto modo de alienação
e perda de si e invocando implicitamente a construção imaginária do
Eu, tal como foi desenvolvida por Jacques Lacan. A partir dos anos 80,
o trabalho de Cindy Sherman vai intensificar a exploração de um
universo profundamente feminino (e aparentemente feminista) entrelaçando
a visão idealizada e espectacularizada do rosto e do corpo
com a consciência dos mesmos enquanto cartografias de sentido,
dando assim origem a uma multiplicidade de papéis, construídos a
partir de uma feminilidade profundamente codificada que deriva sempre
de um exterior. Laura Mulvey, em «A Phantasmagoria of the Female Body:
The Work of Cindy Sherman»[6],
assinala que, a partir da série Centerfolds (1981), o trabalho
de Sherman passa a explorar crescentemente um efeito de superfície,
centrado na experimentação com a cor, o brilho, a luz, a escala,
enfim com as qualidades formais da fotografia, ganhando destaque uma
sofisticada exploração do código da fotografia comercial e da
subordinação da modelo à textura e encenação específicas do medium
fotográfico.
Com
efeito, o fascínio fetichista do código fotográfico e a sua
experimentação formal dominam os trabalhos de Sherman a partir dos
anos 80, continuando igualmente a exploração da vertente alegórica
do seu universo fotográfico. Assim, por exemplo, Untitled #98
(1982) da série Pink Robes, continua a explorar o universo da
pornografia, trabalhado já em Centerfolds (1981), mas
retomando agora o formato vertical, tentando contrariar a
vulnerabilidade sugerida pela posição horizontal omnipresente na série
anterior. Nesta fotografia, a única desta série exibida na
Serpentine Gallery, uma jovem mulher cobre o corpo nu com um robe
cor-de-rosa, encarando-nos com um olhar frontal e decididamente não
sexy. A mancha cromática rosa expande-se ocupando grande parte da
foto e o jogo de luz e sombra acentua a simulação de um momento de
pausa de uma jovem, numa sessão de fotos pornográficas.
Paralelamente,
a fotografia de moda é igualmente uma referência incontornável do
trabalho de Cindy Sherman, entre 1983 e 1984. Com efeito, durante este
período, Sherman metamorfoseia-se em modelo fotográfico,
desmultiplicando o seu jogo de papéis e disfarces, num misto de fascínio
e provocação dos cânones de beleza instituídos. Assim, um certo
exibicionismo eufórico ostentado, por exemplo, pela protagonista de Untitled
#123 (1983), banhada numa luz solar, de sandálias e T-shirt
de riscas, aparentemente pronta para um passeio na praia ou na
esplanada, contrasta com a agressividade da modelo de punhos cerrados,
sóbrio e estilizado casaco preto e farta cabeleira loira platinada,
que lhe esconde o rosto, deixando apenas ver um rasgo de olho azul,
sublinhado pela pele clara do decote vertiginoso em Untitled
#122 (1983).
O
tema da moda retomará, com requintes de sofisticação, nos anos de
1993-94, agora centrado sobre a análise de estereótipos femininos
universais e ostentando claramente a influência do trabalho
realizado, entre 1989-1990, nos History Portraits. Assim,
veja-se por exemplo, o Untitled #279 (1993), actualmente
em exibição no Centro Cultural de Belém, fazendo parte integrante
da exposição Corpus. Visões do Corpo na Colecção Berardo,
a par de Untitled #276 (1993). Ambas exibidas na
Serpentine Gallery, a primeira fotografia (com o subtítulo Vivienne
Westwood) apresenta-nos uma modelo já envelhecida, cuja expressão
é um misto de arrogância e de provocação, lábios bem pintados de
vermelho e sobrancelhas carregadas a lápis preto. A exuberância do
vestido branco, requintadamente bordado, contrasta com as meias sujas
da modelo que, sobre a profusão da sua cabeleira encaracolada,
ostenta umas cuecas brancas (provavelmente masculinas), a sublinhar a
rebeldia e descompostura da personagem. No segundo caso, a modelo
parece mimetizar o papel de uma princesa ou fada, com uma coroa algo
desequilibrada a enfeitar a sua vasta cabeleira loira e uma varinha mágica
simbolizada nas três flores cujo longo caule prende na mão. O
vestido claro com motivos florais trai, no entanto, pela sua transparência,
a nudez desta personagem, que não corresponde de forma alguma a um
corpo idealizado.
Este
ataque às formas perfeitas do corpo e à idealização do rosto
feminino acentuara-se já em History Portraits (1989-1990), uma
série de fotografias nas quais Cindy Sherman reconstrói cenários e
personagens da pintura clássica, introduzindo, na auto-representação,
elementos deformantes e irónicos que acentuam o universo grotesco
destes retratos históricos. O jogo escarnecedor com as próteses
(narizes protuberantes, seios disformes, barrigas grotescas) e a
ironia de algumas das adaptações permitem-lhe levar a cabo um
verdadeiro atentado às representações idealizadas do passado,
nomeadamente às figuras maternais e virginais. Com efeito, a este
respeito, a exposição na Serpentine Gallery apresentava,
nomeadamente, Untitled #205 (1989), onde a prótese dos
seios e da barriga acentuam o carácter grotesco deste corpo maternal,
se bem que os gestos de pudor dos braços e mãos, assim como a muito
desenhada maquilhagem do rosto tentem devolver a feminilidade a este
corpo deformado. A ironia acentua-se em Untitled #225 (1990),
na qual a belíssima e imaculada jovem mulher, maquilhada, penteada e
trajada a rigor, desnuda um seio plástico, onde a fertilidade
esguicha um vigoroso jacto de leite.
Este
impulso no sentido do grotesco retoma no trabalho mais recente de
Cindy Sherman, nomeadamente nos retratos de mulheres mais velhas, de
aparência vulgar e gasta, que servem de espelho invertido e
desfigurado das starlettes e das pin-ups de Untitled
Film Stills. Veja-se, a este propósito, o tocante Untitled
#359 (2000) onde uma mulher de meia-idade nos encara, no
artificialismo kitsch da cabeleira espessa e entrançada e na
profusão de fios e colares dourados, os traços do rosto macerados
pela maquilhagem que, ao invés de proteger, só expõe e desnuda este
rosto que se oferece num prenúncio da figura do palhaço, que invade
a galeria de retratos criados por Sherman, no ano de 2003. Na verdade,
a personagem do palhaço vem simultaneamente literalizar o gosto pelo
disfarce e pela máscara assim como sublinhar, ironicamente, a contínua
suspensão do referente do auto-retrato sob a figura sobejamente
popular e mítica do palhaço de circo. Assim, talvez a fotografia
mais reveladora desta série seja Untitled #413 (2003)
onde o personagem do palhaço triste sobressai, no jogo colorido do
fundo (aparentemente uma versão digital dos cartazes de circo),
ostentando no seu casaco de cetim preto, bordado a rosa e em letras
bem floreadas, o nome Cindy, exibido como etiqueta de identificação
que não cessa de fazer desaparecer Sherman no seu infinito jogo de máscaras.
Margarida
Carvalho
Dezembro
de 2003
[1]
CAHUN, Claude, citada por LICHTENSTEIN, Therese, «A Mutable
Mirror: Claude Cahun», in Artforum 30, April, 1992, p. 66.
Cf. CHADWICK, Whitney, «An Infinite Play of Empty Mirrors: Women,
Surrealism, and Self-Representation», in CHADWICK, Whitney (ed.),
Mirror Images: Women, Surrealism, and Self-Representation,
Cambridge, The MIT Press, 1998, p. 27.
[2]
LICHTENSTEIN, Therese, «A Mutable Mirror: Claude Cahun», in Artforum
30, April, 1992, p. 66. Cf. KLINE, KATHY, «In or Out of the
Picture: Claude Cahun and Cindy Sherman», in CHADWICK, Whitney (ed.),
op. cit., p. 67.
[3]
STEINER, Rochelle, «Cast of Characters», in Cindy Sherman,
London, Serpentine Gallery, 2003, pp. 7-8.
[4]
Cf. «Uma Fantasia de Infância:
“Untitled Film Stills” (1977-80)» in MEDEIROS, Margarida, Fotografia
e Narcisismo: O Auto-Retrato Contemporâneo, Lisboa, Assírio
& Alvim, 2000, pp. 121-123.
[5]
Cf. OWENS, Craig, «The Allegorical Impulse: Towards a Theory of
Postmodernism», in WALLIS, Brian (ed.), Art After Modernism:
Rethinking Representation, New York, The New Museum of
Contemporary Art, 1984.
[6]
Cf. MULVEY, Laura, «A Phantasmagoria of the Female Body: The Work
of Cindy Sherman», in New Left Review, nº 188, July/August
1991.
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