A trilogia Matrix fecha com um filme que esquecera as suas propostas iniciais:
a proposta de uma reflexão estilizada sobre o verdadeiro espaço
da realidade, através de uma narrativa ambígua navegando entre o
simulacro e o universo sensível. Com Matrix
Revolutions, a expressão dos códigos dos jogos vídeo está
inteiramente assumida. O sistema da narrativa clássica do cinema
americano deixou de tomar como base a linearidade temporal e
virou-se para a aparente complexidade da imagem virtual que
consegue encaixar uma série de espaços um pouco à maneira das
bonecas russas. A narrativa em “níveis”, cada vez mais
utilizada no cinema, substitui, devagar, uma forma cinematográfica
que esgotara as suas possibilidades (?).
Com a
trilogia Matrix, o espectador tem que actualizar a sua percepção da
realidade e adaptar-se à lógica virtual dos acontecimentos. Mas,
no fundo, os verdadeiros códigos do cinema mainstream
clássico continuam em vigor: entre as várias cenas de efeitos
especiais requintados, insere-se os típicos clichés
americanos, pseudo-filosóficos, pseudo-metafísicos. Além disso,
os vários níveis da narrativa não deixam de ter uma forte relação
de causalidade que, de novo, faz parte do sistema da indústria
cinematográfica americana.
É óbvio
que os vários Matrix
obrigam a pensar sobre o papel da imagem na sociedade contemporânea
e aflora o problema da iconoclastia.
O controlo exercitado pelas imagens nos indivíduos é
extremamente perigoso em particular quando elas manipulam não só
a sua percepção do mundo exterior, mas também o seu espaço
interior (que arrisca em tornar-se virtual). A antecipação do
virtual sobre o real induz a confusão na descodificação do
sentido da própria realidade (os realizadores de Matrix,
os Irmãos Wachowski, fazem sem dúvida referência ao muito
mediatizado hiper-real
de Baudrillard). Seria então necessário destruir o espaço da
simulação (das imagens virtuais) que afasta o indivíduo da
verdade e da liberdade, para que este consiga reencontrar a sua
essência que se manifesta através da sua capacidade de amar.
O que é
exprimido nas recentes narrativas em níveis é uma regressão
infantil da dramaturgia; em Matrix
Revolutions, os mundos tendem em prolongar-se. O mundo real
dos dissidentes funciona como o mundo real do espectador que se
enconcontra frente a um jogo vídeo e que destroi compulsivamente
e massivemente as maquinas ameaçadoras. Para simular um código
narrativo complexo, os Irmãos Wachowski introduziram um novo espaço,
entre o real e o virtual, uma espécie de “intervalo”
representando a passagem de um universo para o outro, ou mesmo de
uma espécie de conceito para outro (a complexa e ambígua percepção
da realidade e a sua relação com a produção massiva de imagens
de todos os tipos). É verdade que a ideia não é desinteressante
mas afunda-se numa estilização que a torna, aliás como o resto,
artificial. De facto, a proposta inicial de Matrix
relativa à dificuldade de distinguir (através da percepção) o
mundo real do simulacro, seja do sonho ou da imagem computarizada,
banaliza-se e propõe uma reflexão prática a partir de um
dispositivo de criação e percepção de imagens que se pode
aparentar ao da Caverna de Platão.
A narrativa
cinematográfica em níveis pretende claramente mostrar que a
fronteira entre o mundo real e o mundo virtual está cada vez mais
frágil. Propondo novos códigos expressivos que rejeitam a
linearidade clássica de narração, o cinema das novas
tecnologias interioriza a opacidade diegética,
geralmente muito bem aceite por um público familiarizado com os
jogos de computadores e “treinados” a não refletir sobre a
pertinência dos acontecimentos. Estamos longe da última sequência
enigmática de 2001 Uma
Odisseia no Espaço que mergulha o espectador num espaço
virtual abstracto (e é esta abstracção que falta à representação
do espaço virtual nos filmes actuais), tocando algo
que ultrapassa o entendimento e as expectativas do espectador. E
se, de facto, “ os universos simulacrais mais sofisticados que
podemos conceber hoje convidam ao jogo da desincorporação e da
reincorporação”,
é talvez por esta
inexorável tendência em ligar o mundo virtual ao mundo real que
os novos códigos narrativos do cinema continuam a sua tradição
clássica: nunca deixar o espectador desemparado e confortá-lo no
seu mundo inteligível.
A problemática da codificação digital (tema de Ars
Electronica 2003) aplicada à narrativa fílmica continua virtual
no sentido em que as suas capacidades expressivas estão longe de
estar esgotadas. Lamenta-se, aliás, ver que o cinema se limita em
reproduzir esquemas já existentes, mais preocupado pelo sucesso
de bilheteira do que o seu potencial significante. O exemplo de Matrix
Revolutions mostra bem a falta de ousadia (e as sua limitações)
do cinema mainstream:
tratando-se de uma trilogia, o último filme
esquece-se de aprofundar as suas questões filosóficas
iniciais sobre a existência e o papel da imagem virtual, entre
outros. Em vez de se debruçar sobre a forma como esses conceitos
poderiam ser expressos, Matrix Reloaded e Matrix
Revolutions viraram as costas ao pensamento e lançaram-se
para a facilidade: o princípio dos jogos de computadores (com o
espectáculo de efeitos especiais) e uma explicação quase
gratuita sobre o sentido do mundo.